Namastreta

Sônia Guajajara pela luta dos encantados

Por Nathan Fernandes, PunkYoga*

Sempre imaginei que termos como “Mãe Terra” ou “Mãe Natureza” fossem uma forma carinhosa de demonstrar dedicação ao meio ambiente. Mas a Sônia Guajajara me ensinou que o conceito pode ser literal. 

Para os guajajara e muitas outras etnias indígenas, por exemplo, a terra realmente é uma mãe.

Não é um conceito separado e abstrato. A natureza é parte da família.

Eu só entendi isso em um seminário a que fui ano passado, no qual a Sônia disse: “Muita gente compra um terreno como investimento e vende pra sair do aperto. Não tem relação nenhuma com a terra. Nós não.”

Pra gente, a nossa terra é a nossa casa, a nossa mãe. E mãe não se negocia.



Não tem como discutir com o argumento “mãe não se negocia”.

Me lembra também a relação dos krenak com o rio Doce, que eles conhecem como Wutu, e consideram um avô.

“Ele [o rio] é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas”, escreveu Ailton Krenak, em Ideias Para Adiar o Fim do Mundo. “Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: ‘Isso é algum tipo de folclore deles’. Quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que o dia vai ser próspero, eles dizem: ‘Não, uma montanha não fala nada’. Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial extrativista.”

Eu usei essa citação numa reportagem que fiz para o Yahoo!, que reflete sobre o que os povos indígenas podem ensinar ao mundo pós-coronavírus. Nessa reportagem, eu também falei com a Sônia.

A Sônia é a primeira mulher indígena do Brasil a concorrer à vice-presidência da República, na chapa de Guilherme Boulos, do PSOL, em 2018. Inevitavelmente, nosso papo acabou se estendendo pela política.

Ela basicamente achincalhou o Bolsonaro e lamentou pelas mortes inspiradas no descaso e na ignorância dele. Nossa conversa virou uma entrevista, que você pode ler aqui.

Além disso, ela topou explicar um pouco mais ao PunkYoga sobre a filosofia guajajara e sua relação com a terra:

“Nós nos consideramos conectados com todas as riquezas, a água, os animais, as florestas, os encantados, a ancestralidade… Percebemos que muitas comunidades não-indígenas perderam essa conexão. Acredito que lá trás todo mundo tinha essa compreensão de que a Terra é uma mãe, mas isso vai se perdendo. E, ao se perder, passam a tratar a terra como mercadoria.”

Ela diz que os indígenas são um contraponto ao desejo de destruição das pessoas que não conseguem enxergar relação entre a floresta e sua própria vida. É por isso que ela faz um trabalho incessante de sensibilização, mostrando como os modos de vida indígenas ajudam a melhorar o planeta não só pra eles, mas pro madeireiro que invade as suas terras e os mata também.

O trabalho de conscientização nem sempre é fácil:

“A gente tenta explicar, mas muitas vezes parece que estamos falando com a pré-escola. Acho que as pessoas se acostumaram tanto com o modo de vida capitalista que acham que o dinheiro fabrica tudo. Elas acham que a água vem da garrafa, sem imaginar que para poder beber essa água ela precisa de uma nascente protegida. E essas nascentes geralmente ficam em reservas indígenas, nós as protegemos. Diferente dos rios das grandes cidades, que não têm condições de vida. Por isso, a gente percebe uma necessidade grande de sensibilizar as pessoas em relação aos cuidados com a Mãe Natureza.”

Acho que as pessoas se acostumaram tanto com o modo de vida capitalista que acham que o dinheiro fabrica tudo

Os modos de vida indígenas são muitos. Na entrevista, ela achou importante destacar pelo menos quatro:

“Têm as tribos indígenas com os 500 anos de contato; temos ainda os indígenas que têm entre 30 e 100 anos de contato, é o que chamamos de ‘recente contato’; temos o indígena que está em contexto urbano, mas nem por isso deixou de ser indígena, que vive em cidades como São Paulo, por exemplo, mas mantém vivas suas raízes; e têm ainda os indígenas isolados, que chamamos de ‘povos autônomos’.”

Garantir que o governo respeite toda essa diversidade é uma e não trate a terra como uma tutora mal amada, em vez de mãe, é uma tarefa que ela leva bem a sério.

“Hoje, o governo Bolsonaro fala claramente contra a demarcação dos territórios indígenas e que se deve integrar os povos indígenas à sociedade. Esse integracionismo que ele fala não é só uma ameaça à nossa diversidade étnica e cultural, é uma ameaça real para todas as pessoas.”

Tento sair da densidade da política e voltar para os assuntos mais sutis da mente, mas ela já foi pega pela efervescência raivosa que o nome Bolsonaro causa.

“Os guajajara não usam muito o termo ‘mitos de formação’. Para nós são histórias, que orientam o nosso comportamento desde sempre em relação ao respeito e à ancestralidade. Mas acho que hoje é muito mais urgente que os não-indígenas conheçam a realidade atual das comunidades. Na escola ensinam sobre o nosso passado, como se vivêssemos ainda em 1500.”

Já faz tempo que a Sônia percebeu que ninguém vai resolver as tretas dos indígenas, a não ser eles mesmos. Por isso, ela me contou que só vai se candidatar de novo nas próximas eleições se for para concorrer a presidente. Isso me fez pensar que ter pela primeira vez um governo que não seja pautado pela supremacia do ser humano em relação à natureza só pode ser bom.

Mas isso é o futuro. Porque, no presente, os povos nativos ainda precisam encontrar forças para lidar com abusos que já acontecem há mais de 500 anos — seja o desrespeito em relação à terra que habitam, ou à nomeação de um evangélico para um cargo de chefia da Funai.

No caso dos guajajara, a força vem do passado. “Para nós, os encantados são toda essa força espiritual que a gente recebe, são todos os nossos ancestrais. Eles não se foram, são seres de luz que alimentam a nossa luta, as nossas relações. Eles nos orientam neste momento”, explica ela. “Se não fosse essa orientação trazendo a força da ancestralidade a gente não resistiria a tanta interferência.”

*Nathan Fernandes é jornalista e escritor. Já publicou em veículos como Galileu, Yahoo!, The Intercept, UOL Tab, Trip, Super e Veja. É criador do projeto PunkYoga, um depositório xamânico-anarco-queer-psicodélico. Para outros textos & doideiras mil, assine a newsletter.