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Para quem as bruxas rezam à noite

Por Nathan Fernandes, PunkYoga*

Sempre imaginei que termos como “Mãe Terra” ou “Mãe Natureza” fossem uma forma carinhosa de demonstrar dedicação ao meio ambiente. Mas a Sônia Guajajara me ensinou que o conceito pode ser literal. 

Lembro a primeira vez que ouvi sobre a Pam. Foi quando eu tava procurando personagens pra matéria que fiz com a Julinha, sobre bruxaria. Queria achar alguém que falasse de magia, mas que também falasse de política.

E aí dei de cara com as leituras de tarô da Bruxa Preta, que ela define como “uma ferramenta de cura e libertação”. Nas postagens do Insta, a Pam passeia entre assuntos tão diferentes quanto masculinidade tóxica e autocuidado, sempre com uma perspectiva não dogmática.

Quando vi o que ela faz me lembrei de uma camiseta que vi na internet uns anos antes, que dizia: “Você sofreu lavagem cerebral para achar as características eurocêntricas o epítome da beleza”. Até conhecer o trabalho da Pam, eu nunca tinha percebido que essa lavagem cerebral transcendia a questão da beleza e também se estendia à espiritualidade. Afinal, mesmo que a espiritualidade seja um conceito que valoriza a dissolução das diferenças, ela é praticada por humanos, que ainda chafurdam na lama do racismo estrutural que envolve todos os aspectos da sociedade.

A Pam deixa isso muito claro, compartilhando seus mergulhos na fluidez da consciência através de uma perspectiva muito sólida e material. Ela nos lembra que, se Jesus era um hippie comunista e Buda era um subversivo anárquico, as questões espirituais não podem se descolar do social. Ignorar as diferenças entre as pessoas é fingir não perceber que o acesso ao conhecimento é um privilégio. É continuar observado as coisas por trás de um véu da Gucci de ilusão.

Se hoje a Pam fala de bruxaria marginal e espiritualidade decolonial com a desenvoltura de uma poetisa, isso tem tudo a ver com a forma como ela despertou para esses assuntos:

Começou a rolar um incômodo nos padrões, em como as crenças foram construídas. Até que caiu a ficha da espiritualidade. Eu sempre tive o meu tipo de contato, seja pela bruxaria, ou pela umbanda… Então, acredito que o que me fez despertar foi a percepção de que existe algo maior e melhor para nós do que tudo o que fomos condicionados a acreditar.

Foi essa percepção que a ajudou a se empoderar e a desenhar por si própria um caminho dentro da espiritualidade:

Atualmente eu estou na linha das religiões de matriz africana, porque é sobre se encontrar, se conectar, e se perceber nesse sentido. Mas, com a autonomia espiritual, o estudo de outras crenças sempre se faz necessário, tem muita coisa e informação, e, obviamente, a gente não consegue absorver tudo. Mas faço o que posso. Tenho focado em um determinado tema, e, assim que o termino, sigo para o próximo depois de um tempo para absorver o conhecimento e aplicar na vida e para não gerar conflito de ideias.

A magia me parece uma coisa líquida, amorfa. Ou melhor, ela é fluida. Quem consegue pegá-la com a mão dá a ela forma que quer. E quem disser que a domina está mentindo. 

Na série animada The Midnight Gospel, da Netflix, um dos personagens explica que, assim como uma lição passada de geração em geração, a magia é transmita como se fosse uma corrente do mestre para o discípulo. Acontece que nem sempre existe um mestre disponível. E, de vez em quando, acontece uma explosão nas sinapses do discípulo que o faz perceber que ele mesmo pode assumir o arquétipo do mestre. 

Acho que isso exige muita maturidade e não dispensa estudos, pelo contrário. Mas me parece bastante compatível com a ideia de que, na verdade, não existem mestres. O objetivo de todo caminho espiritual é que você se torne o seu próprio mestre. Existem várias portas que dão neste fim. E eu me identifico bastante com o caminho da Pam:

Hoje, estou desenvolvendo a mediunidade dentro de um terreiro, então digamos que eu atrele o conhecimento da umbanda com uma espiritualidade mais autônoma. Acredito que nós temos que ir pelo caminho que se aplique a nossa realidade. A minha foi autônoma, porque, em primeiro lugar, não tive incentivo, nem acesso à muita coisa. Estive solitária em vários momentos. Penso que não me cabe dizer o que seria mais adequado, porque a espiritualidade, ainda que com suas diversas maneiras de existir, é pessoal demais. Por isso, é muito importante se conhecer, se entender — e ter aquela rede de apoio ajuda muito.”

Não surpreende, portanto, que ela tenha moldado sua magia fincando as raízes em terra firme, o que permite uma relação muito mais sincera com os seus sentimentos.  

Eu sou da honestidade, desde que comecei sempre falei que o meu maior incômodo era essa positividade tóxica que nos incita a acreditar, como se pessoas não pudessem sentir dor, ou como se tivéssemos controle das realidades que nos cercam, em relação à questão social.

Pessoas que conseguem transformar o seu íntimo em fonte de originalidade, ao mesmo tempo em que expõem suas lutas internas, adquirem uma camada de beleza diferente. Mas nem é isso o que mais me impressiona na Pam.

Em um outro episódio de The Midnight Gospel, um personagem diz que gosta de pessoas que oferecem às outras uma lente diferente para enxergar o mundo. É isso que a Pam faz ao compartilhar suas histórias.

*Por Nathan Elias-Elias

Este texto foi publicado originalmente na edição #29 da newsletter PunkYoga

*Nathan Fernandes é jornalista e escritor. Já publicou em veículos como Galileu, Yahoo!, The Intercept, UOL Tab, Trip, Super e Veja. É criador do projeto PunkYoga, um depositório xamânico-anarco-queer-psicodélico. Para outros textos & doideiras mil, assine a newsletter.  


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