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The Midnight Gospel só para psiconautas

Por Nathan Fernandes, PunkYoga*

Aqui está o diagnóstico do especialista em psicodélicos Luis Fernando Tófoli 

Luís Fernando Tófoli é uma pessoa minuciosa. Mas, além de minucioso, ele também é psiquiatra da UNICAMP e coordenador do ICARO, um grupo que estuda o uso terapêutico de psicodélicos. 

Ao lado de cientistas como Sidarta Ribeiro, Stevens Rehen e Draulio Araújo, ele vem alargando os limites das pesquisas com essas substâncias no Brasil.

E eu me sinto a própria Britney Spears científica em Oops!… I Did It Again por fazer parte de um grupo de estudo sobre ayahuasca que ele coordena.

Por isso, depois que assisti a The Midnight Gospel, quis muito saber se aquilo que eu tava sentindo com o fim do último episódio (sem spoiler) poderia ser comparado a uma experiência com ayahuasca, cogumelo ou LSD.

Ele assistiu a todos os episódios de uma vez só, leu o guia que eu preparei sobre a série e falou pra essa matéria que eu fiz pro TAB Uol, explicando como uma animação da Netflix sobre angústias existenciais e vaginas gigantes pode nos ajudar a atravessar a quarentena.

Quando ele tava no quarto episódio, deu um pause e me mandou esses prints aqui:

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Meu mundo caiu. Tudo bem que qualquer pessoa poderia ter pensado no termo “PunkYoga”, mas qual é a chance do nome da minha newsletter aparecer na obra que mais molhou meus olhos nos últimos tempos? Essa sincronicidade só podia querer dizer uma coisa…

Nada.

Mas ia ser legal demais pra me exibir.

— Não tô acreditando! — Eu respondi pra ele no WhatsApp, sem saber o que pensar.

— Não acredite mesmo. Nothing is real. — Ele me respondeu, misterioso.

Era um print fake. Ele explicou depois que fez uma montagem substituindo o termo “learn” por “punk” só pra me fazer acreditar por alguns segundos nas ligações ocultas do Universo. Mas era mentira.

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Por isso, eu digo que o Tófoli é uma pessoa minuciosa. Segundo ele próprio:

Aquela coisa do médico chato, no primeiro episódio, é a minha cara. Acho que a mensagem das drogas que ele passa é excelente [de que drogas são substâncias que não são boas, nem más, elas dependem da circunstância]. Subscrevo o que ele fala na série, tirando a parte dos zumbis.[Risos].”

Logo, não poderia ter ninguém melhor pra comentar se o desenho podia ou não ser comparado com uma experiência psicodélica.

A resposta curta é: não. A resposta longa é: a série é muito mais do que isso.

Eu não faria uma única leitura psicodélica. Claramente o Pendleton [Ward, criador de Hora de Aventura e um dos dois criadores de Midnight Gospel] se interessa pelo assunto, e o próprio Duncan [Trussell, o outro criador] é tão interessado que foi encontrado por alguém da minha equipe no Psychedelic Science 2017, então existe uma conexão. Mas isso é uma coisa que eles já dispensam logo no primeiro capítulo. Do ponto de vista visual, é psicodélico. Mas acho que o fundamental é o texto.

Tófoli faz uma comparação com o episódio três, no qual o Homem Aquário explica que a magia é transmitida de forma oral — o que faz bastante sentido para uma animação que usa como base um podcast.

Não quero dizer que a camada visual não seja importante. Se você ficar só no visual, está tudo bem. Mas acho que a mágica está na palavra. A pessoa tem que prestar atenção no que está sendo dito, e não desistir nos primeiros episódios.”

Segundo ele, as informações transmitidas garantem que não apenas pessoas ligadas aos psicodélicos possam se interessar pela série, mas também aqueles ligados à meditação ou a outras formas de perceber o mundo.

Tanto que, de certa forma, a série faz um caminho: parte dos psicodélicos para chegar no Ram Dass, uma pessoas que deixou os psicodélicos há muito tempo para trabalhar com outras questões da consciência.”

Assim como em uma experiência psicodélica, na série, o caminhão de informações despejadas na mente é tão grande que é preciso um tempo para assimilar tudo, já que a animação mistura questionamentos existenciais, filosofias orientais e angústias humanas com zumbis cantores, cachorros depressivos & polvos meditadores. Como lembra Tófoli, é preciso fazer o que ele chama de integração, dividir o processo com outra pessoa, por exemplo, para entender aos poucos o que foi passado.

Durante dez anos, o psiquiatra foi membro da União do Vegetal (UDV) — uma das três principais religiões cristãs brasileiras que usam ayahuasca em seus rituais, além do Santo Daime e da Barquinha —, ele compara a dificuldade de lidar com o volume de informações da série à dificuldade das primeiras experiências com o chá.

Na minha primeira vez na União do Vegetal, eu estava lá tentando lidar com aquele turbilhão na mente, e via as pessoas se levantando e fazendo perguntas. Pensava: será que essas pessoas tomaram a mesma coisa que eu? Com o tempo, você aprende a filtrar as informações e se sente mais seguro para também levantar e fazer suas perguntas. É a mesma coisa no desenho. Acredito que as pessoas façam caminhos diferentes para aprender a lidar. Algumas podem se interessar mais pelo visual. Para mim, o mais interessante é a fala. Mas tem a ver com a minha formação dentro da ayahuasca, que é centrada na palavra. Na UDV, os ensinamentos são todos orais, não tem nada escrito.”

Na reportagem para o TAB Uol, eu compartilhei uma sensação que meu irmão teve ao assistir ao terceiro episódio, aquele em que o Homem Aquário explica que magia nada mais é do que intenção e energia direcionados a um foco. “Se você não tem um planejamento, qualquer resultado serve. Percebi que falo isso para todo mundo, mas nunca exerci na minha própria vida”, me disse o meu irmão.

Foi o que me levou a perguntar sobre a relação da série com os psicodélicos, foi pela questão terapêutica, já que, desde meados dos anos 2000, essas substâncias vêm se mostrando promissoras no tratamento de transtornos, como ansiedade e depressão.

Têm muitas questões aí. A gente tem que lembrar a base educacional das pessoas. Tem gente cuja preocupação maior é sobreviver em um mundo onde os recursos são mal distribuídos. É preciso fazer mil ressalvas. Mas, de fato, há uma porção da humanidade para a qual essas questões chegam de maneira mais evidente. Fazendo essa ressalva, acho que a série pode ser terapêutica, sim, desde que a pessoa tenha condições de fazer essas reflexões sobre si mesma. Também não acho que sejam questões tão inalcançáveis, tem a ver com o cotidiano, o dia a dia mesmo. A questão é que grande parte das pessoas não consegue nem ter tempo para refletir sobre o que elas vão comer, então tem que tomar esse cuidado de não esquecer que tem demandas não atendidas na humanidade. Não que a questão da morte não seja uma questão que todos tenham que se confrontar, mas, posto isso, acho que pode ser terapêutico. Para mim, foi muito terapêutico. Foi muito bom poder ver esse desenho na pandemia, porque traz reflexões sobre a nossa própria individualidade. E nós estamos no momento de refletir sobre isso.

Segundo ele, se colocar como espectador de uma série tão descontrolada o lembrou de que o controle é só uma ilusão. “A gente pode achar que o vírus mata mais a uns do que a outros, mas você nunca sabe quando vai ser sorteado pelo dado da morte.”

Aceitar essa ideia é percorrer o mesmo caminho do prisioneiro Bob, do episódio 5, que só interrompeu seu ciclo de vida e morte quando aceitou plenamente sua condição. Ele “abandonou a esperança”, não por pessimismo, mas simplesmente porque ela deixou de fazer sentido. Em outras palavras, ele transcendeu.

E, afinal, para o Tófoli, é sobre isso que é a série.

Eu não acho que os psicodélicos sejam a salvação da humanidade, como muita gente. Acho que eles são ferramentas úteis que ainda precisam ser entendidas, muito embora também perigosas. E não acho que a série seja sobre o uso terapêutico de psicodélicos. Acho que é uma série que fala sobre a experiência de transcendência, que pode vir pelo uso de psicodélicos ou não. Mas passa por várias coisas, como sonhos, meditações, visões, intuições, experiência de adoecimento, sofrimento… É mais do que uma experiência psicodélica.”

Concordo. E, assim como os psicodélicos, também entendo que nem todo mundo vai se interessar pela série. Alguns vão achar que é coisa de lunático, ou que os assuntos tratados vão matá-los de tédio.

Isso me lembra da primeira vez que tive uma experiência com ayahuasca. Fiquei tão impressionado que achava que todo mundo deveria conhecer esse tipo de sabedoria que nos fazia enxergar uma outra realidade. Como isso não tá passando no Jornal Nacional, pensei. Daí me dei conta, como o Marinho registrou nesse som do projeto DesReal, de que esse tipo de conhecimento já vem sendo transmitido há milênios. A gente é que não escuta. Ou escuta quando está pronto.

Da mesma maneira que foi terapêutico para mim, não quer dizer que seja pra todo mundo. Para algumas pessoas pode ser muito angustiante. Por isso, acho importante que role a integração, que se veja a série junto de alguém, discutindo, conversando, aprofundando a experiência. Afinal, como ele fala no episódio cinco, não são os nós que formam o tecido do Universo, mas as conexões.”

Gosto de The Midnight Gospel porque ele encapa filosofias tradicionais e conhecimentos ancestrais com cores berrantes e personagens surreais em uma série que eu posso assistir largado no sofá. É a melhor representação daquele meme que foi impulsionado pela quarentena, que diz que se você não pode viajar para fora, viaje para dentro.

*Nathan Fernandes é jornalista e escritor. Já publicou em veículos como Galileu, Yahoo!, The Intercept, UOL Tab, Trip, Super e Veja. É criador do projeto PunkYoga, um depositório xamânico-anarco-queer-psicodélico. Para outros textos & doideiras mil, assine a newsletter.  


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