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Sheela & a ética de Exu

Por Nathan Fernandes, PunkYoga

A Sheela é um disparate. Um disparate à mente ocidental. Quando recebi um e-mail carinhoso dela, em resposta a uma mensagem que eu tinha mandado, lembro de ter pensado: “A mulher que envenenou uma cidade inteira com salmonela, que foi acusada de assassinato e de ser responsável pelo maior esquema de fraude de imigração dos EUA termina os e-mails com ‘Love'”? Sim. 

Foi graças a minha amiga Carol Apple que eu consegui falar com ela. A Carol é instrutora de meditação e pilota um projeto muito alto astral chamado Namastreta. Além do site, toda semana ela conduz entrevistas com pessoas que falam sobre a espiritualidade de uma forma não babaca. Daí que de alguma forma ela descobriu que a Sheela tinha um instagram e ficou meses mandando mensagem no direct. Um dia a Sheela respondeu. 

A Carol pediu pra eu continuar a conversa, que era em inglês, e me convidou a entrevistar a Sheela pro Namastreta, caso ela topasse. Foi assim que eu recebi um e-mail muito carinhoso da Sheela dizendo que seria uma honra falar com jornalistas do Brasil. Eu e a Carol quase tivemos uma síncope. As perninhas ficaram bambas. Como assim a mulher que foi o braço direito de um dos gurus mais conhecidos da história vai topar falar com a gente? 

Acho que qualquer pessoa que tenha assistido à doidíssima Wild Wild Country, da Netflix, me entende. A série documental mostra o que chamam de “experimento do Óregon”, quando um guru indiano chamado Bhagwan Shree Rajneesh criou uma comunidade espiritual dentro de uma cidadezinha, o que acabou culminando em dedo no cy & gritaria & bioterrorismo & tentativas de assassinato & fraudes imigratórias.

Tudo isso sob o comando da Sheela, a qual, ao mesmo tempo em que construía um império rajneesh, também parecia nutrir um amor psicopata pelo Bhagwan, que depois mudou de nome pra Osho — inclusive, melhor caso de rebranding da história. 

O que mais impressiona a mim (e acho que a todo mundo) na figura da Sheela é o quanto ela parece um paradoxo. A Sheela é um disparate. Ela parece sempre muito cínica em relação a tudo o que aconteceu, mesmo tendo sido presa, mas até hoje mantém um amor incondicional ao mestre que, literalmente, quebrou um voto de silêncio só para chamá-la de vagabunda.

Será que se não tivesse sido forte, confiante e despudorada, ela teria sido capaz de plantar uma cidade inteira numa terra pobre em empatia e fértil em hostilidade, xenofobia & machismo? 

Além disso, a mulher que é acusada de tantos crimes bizarros é a mesma que passou as últimas três décadas cuidando de velhinhos e pessoas com necessidades especiais numa casa de repouso. Mais de TRINTA ANOS se dedicando ao outro por vontade própria. Parece mais vocação do que peso na consciência. Ela rejeita a espiritualidade, diz que acredita apenas no amor. Mas talvez esse amor e dedicação sejam exatamente o que falta em muito abutre que se julga espiritualizado. 

A Sheela é um sonho para qualquer jornalista, porque ela é uma pessoa fascinante com uma história extraordinária. Mas eu tava cagando de medo. Eu já tinha feito entrevistas em inglês, mas seria a primeira vez que eu teria que fazer uma entrevista em inglês de uma hora sem edição. Ainda mais com essa mulher. E se eu me enrolasse? E se eu não entendesse o que ela falou? E se na hora caísse um raio e nós trocássemos de corpo dando origem a mais um filme da franquia E Se eu Fosse Você…?

Óbvio que era ansiedade. Ainda fico ansioso toda vez que faço qualquer entrevista. Desde a minha avó até o The Rock. Mas aprendi a lidar com isso ao longo dos anos, e, como eu disse, a Sheela parecia extremamente fofa e receptiva. Quando nós, ousados, perguntamos se ela topava uma hora de entrevista por videochamada, ela disse que poderia ser quando e como a gente quisesse.

Já vi gente muito menos requisitada esperando o champanhe gelar para poder começar a falar com o jornalista — isso rolou real, quando eu trabalhava na Playboy. 

Mas, no caso da Sheela, tinha ainda um agravamento, porque a entrevista aconteceu no dia seguinte ao lançamento do documentário Em Busca de Sheela, também da Netflix. É um filme curtinho que mostra como foi a vida dela depois da prisão. 

No doc., ela diz que não aguenta mais ouvir os jornalistas fazendo as mesmas perguntas há 30 anos. As mesmas perguntas que eu tava planejando fazer…

Foi assim que resolvi exteriorizar minha percepção sobre essa verdade incontestável: a Sheela é um disparate. Isso porque eu achava que, para compreendê-la, seria preciso abandonar o modo como nós fomos educados a pensar, o modo ocidental. Classificá-la como boa OU má é reduzir a sua complexidade. A Sheela transcende a ideia de bom e mal, ela transcende a dualidade. Ser boa e ser má não faz o mínimo sentido porque ela é as duas coisas, e muitas outras além disso. 

Essa definição é exatamente a mesma que o babalorixá e doutor em semiótica Sidnei Nogueira deu sobre Exu, em uma aula no MIT (que não disponibilizaram a gravação). Segundo ele, o pensamento da sociedade ocidental é como uma linha reta e binária; já a ética exuística (de Exu) seria um cruzamento de linhas, que podem ir para todas as direções, abraçando contradições & paradoxos em uma complexidade que o ocidente não suporta.

Exu não é uma coisa OU outra, ele é uma coisa E outra. 

Então, durante a entrevista, eu comparei Sheela a Exu, e perguntei se ela achava que, para as pessoas compreenderem seus atos, elas deveriam pensar fora da lógica ocidental-racional-cristã-binária. 

Achei que isso daria início a uma discussão decolonial sobre como o ocidentais são reducionistas. Mas ela me surpreendeu com uma resposta ridiculamente simples.

“Eu acho que para as pessoas me compreenderem, basta elas quererem”, disse. Achei sábio, porque, afinal, a vontade, o querer, a pulsão, é o que nos move em primeira instância sempre. Quando não tem vontade não tem nada. O ímpeto de realização precede qualquer movimento. Antes de ser decolonial, é preciso querer pensar fora da fôrma europeia.

Mesmo assim, ela não conseguiu escapar de uma reflexão do tipo quando lembrou que os rajneesh não teriam sido tão perseguidos se não fossem vistos como integrantes de uma seita bizarra. A questão é que qualquer coisa que desvie minimamente do que é considerado aceitável pro cristianismo é rotulado como bizarro. Portanto, um grupo de pessoas que reza para outro deus só pode ser uma seita bizarra. Sim, eles também conduziam meditações ativas com gente pelada, mas só porque você acha estranho, não quer dizer que não respeite a uma lógica. 

Entender isso é importante para compreender por que as pessoas se sentiam atraídas por essa “seita” — e se sentem até hoje. Aliás sempre me parece muito mais fascinante entender por que essas coisas acontecem do que apontar o dedo e cuspir. Os rajneesh não eram uma seita nesse sentido pejorativo cristão, eles eram um grupo que subvertia a lógica do consumo. É claro que, para se manter de pé, eles fizeram um monte de cagada. Fizeram exatamente o que tinha de mais odioso na sociedade que criticavam. Pareciam não saber que, ao se instalarem no coração dessa máquina de moer gente chamada capitalismo, eles próprios acabariam sendo moídos. 

Mas é fácil se encantar pelos ensinamentos do Osho, qualquer um que já tenha lido qualquer frase dele vai saber por que ele atraiu tantas mentes. Acho que Wild Wild Country peca por não dedicar um minuto sequer ao pensamento do guru, fazendo parecer que todo mundo que tava ali era um bando de maluco idiota que foi ludibriado.

A ideia não seria passar pano pras bostas que ele fez, mas mostrar justamente que tinha uma lógica por trás daquilo tudo. Tinha um conhecimento ali que transcendia o próprio Osho. E, como bem observou a Carol, na entrevista, a Sheela parece ter absorvido a sabedoria do mestre melhor do que ele próprio. O que só prova que mestres não existem. Nesta longa estrada da vida, tá todo mundo fodido e sem GPS, algumas pessoas só conhecem melhor o caminho, mas ninguém sabe pra onde tá indo. 

Acreditar em um mestre que não queira fazer de você próprio um mestre, ou melhor, acreditar em alguém que não te ensine a pensar por si mesmo, te fazendo enxergar a potência que te ilumina por dentro, é um erro.

Eu li essa ideia num livro do Osho. 

Enfim, a entrevista transcorreu perfeitamente, comprovando mais uma vez que minha ansiedade não se justificava. Carol e eu até fomos convidados a tomar um cafezinho quando estivermos de passagem pela Suíça…

No final, não acho que eu tenha conseguido compreender a Sheela, mas ela me fez compreender, sim, que a verdadeira percepção sobre si mesmo só é completa quando deixamos de julgar e aceitamos a óbvia constatação de que, na verdade, todos nós somos um disparate. 

***
Se você quiser prestigiar o trabalho independente do PunkYoga e do Namastreta com a sua valiosa atenção, dá pra ver a entrevista completa aqui (lembra de ativar a legenda). E, se você tá aqui lendo uma newsletter tão nóia, imagino que já tenha assistido Wild Wild Country e Em Busca de Sheela, na Netflix. Se não assistiu, recomendo.

Como já falei, esta newsletter está passando por um processo de harmonização facial. Desta vez, fiz uma edição mais longilínea porque tô testando os formatos e quero postar esse texto no blog do PunkYoga. E também porque a newsletter é minha e o gerente ficou maluco. Então, não se apegue à forma. “Tudo o que é sólido desmancha no ar.” Posso fazer ela em tópicos num dia, e no outro cometer um textão. Ou posso fazer os dois também, respeitando a lógica de Exu. 

Queria dizer que ter voltado a escrever a newsletter foi a melhor coisa que eu fiz, porque voltei a ter uma desculpa pra me dedicar a mim mesmo. E só meu eu superior sabe o quanto tá foda competir atenção com o Bolsonaro. Dito isso, fora genocida!

Se alguma coisa que eu escrevi aqui fez sentido pra você e você curtiu, a forma mais bonita de retribuir é falando isso por aí. Tenho me encantado com o trabalho de jornalistas independentes, como o Crise Crise Crise, o Núcleo, o Trabalho Sujo e o Namastreta, e percebido como é importante espalhar arte, felicidade radical, anarco-putaria e um estado permanente de carnaval em nossas mentes. Só assim pra não ser tragado pelo lodo miliciano. 

Submeter-se sem revolta é tudo o que eles precisam. 

*Nathan Fernandes é jornalista e escritor. Jápublicou em veículos como Galileu, Yahoo!, The Intercept, UOL Tab, Trip, Super e Veja. É criador do projeto PunkYoga, um depositório xamânico-anarco-queer-psicodélico. Para outros textos & doideiras mil, assine a newsletter.  


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