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Orixá Tempo vê através do vírus

Por Nathan Fernandes, PunkYoga*

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Quando avisei ao Ramon Fontes que iria atrasar a publicação desta conversa, ele me respondeu: “Mulheeeer, relaxa! Quando tiver que sair, sai, sem pressa. No tempo do Tempo”. Não era só um jogo de palavras. 

Ele tava fazendo referência ao orixá Tempo. 

E aí entendi que não existe adiamento ou atraso, as coisas acontecem sempre no momento certo.

Tipo, foi no momento certo que eu conheci o Ramon, que é comunicólogo, mestre em cultura e sociedade, doutorando em literatura e cultura e pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS), da UFBA. Eu fiz essa reportagem sobre hiv & arte para a Trip e ele foi um dos entrevistados

Quando comecei a me aprofundar no estigma do hiv, ainda em 2017, senti a mesma coisa de quando descobri o punk/hardcore, a filosofia & as plantas de poder. Era como se tivessem escondendo alguma coisa por trás de uma cortina, então eu a abria e via um universo se revelando.

Uma das inúmeras coisas que eu aprendi sobre o hiv tem a ver com a linguagem. A Susan Sontag tem um ensaio famoso que explica como essas metáforas militares que a gente usa pra se referir tanto ao vírus hiv quanto à doença aid$ — tipo “lutar contra” o vírus “inimigo” — acabam transformando as vítimas em culpadas.

A OMS considera a aid$ uma doença crônica manuseável, assim como diabetes e hipertensão. Mas você nunca viu ninguém deixar de namorar uma pessoa porque ela tem diabetes, ou evitar beber no mesmo copo que alguém com hipertensão. Isso acontece com quem vive com hiv, mesmo que hoje a realidade seja diferente daquela da década de 1980, porque durante muito tempo a infecção foi relacionada à safadeza das gays.

“o que é claramente um absurdo, porque vulnerabilidade não tem a ver com promiscuidade, além do vírus não escolher orientação sexual.”

(Pausa para um parênteses didático-fenomenal: quem vive com hiv hoje e consegue aderir ao tratamento — disponível no SUS —, reduz a carga de vírus no sangue. A quantidade fica tão baixa que não é possível transmiti-lo, é por isso que mulheres com hiv podem engravidar sem transmitir o vírus para o filho ou o companheiro, por exemplo.)

Quando não prestamos atenção no tipo de linguagem que usamos, podemos contribuir para o aumento do estigma e da dor das pessoas que vivem com hiv. Por isso, gosto muito dessa definição da umbanda: “A palavra é regida pelo elemento fogo: ela pode tanto aquecer, quanto queimar”.

É esse cuidado com a linguagem que me faz escrever hiv em minúscula e aid$ com cifrão, por exemplo. Como me explicou o Ramon na reportagem: 

[O ativista] Herbert Daniel usava a literatura para provocar um deslocamento em torno do termo “HIV/AIDS” (grafado em maiúsculo) e do que pode significar “hiv/aids” (em minúsculo), justamente para diminuir o peso. A infecção não pode roubar o protagonismo da vida de um indivíduo, resumir um corpo a um diagnóstico.”

Nesse episódio esclarecedor do podcast do NuCuS, ele também explica que o cifrão de “aid$” é uma crítica à industria farmacêutica, que demonstra mais preocupação com o lucro do que com as vidas.

Assim fui aprendendo que, como no filme A Chegada — em que uma linguista desconstrói a ideia de passado, presente e futuro ao estudar uma língua alienígena — a linguagem molda a nossa realidade. Não à toa William Burroughs afirmou que o verdadeiro vírus é a linguagem.

Recentemente, o Ramon fez um artigo para a Revista Periódicus, no qual ele escreve a partir do ponto de vista do vírus do hiv que habita seu corpo. Achei isso muito curioso, e perguntei pra ele como foi deslocar o olhar e se colocar nessa posição. Ele respondeu:

O ato de se colocar no lugar de outras vivências faz com que a gente reflita e mude padrões nocivos que há tempos vêm deslocando nossa tal ética humana. Ao ver vídeos como os de derramamentos de óleo, incêndios de florestas, rompimentos de barragens é impossível não brincar com a linguagem e entender que o humano é o “vírus” da Terra. Por outro lado, a vivência com o hiv nos impõe muitos dilemas, e um deles, no meu caso particularmente, é entender que o vírus me colocou no mundo como um ser de outra linguagem, mais particularmente um corpo de uma linguagem marcada, rotulada, um corpo visto como menos potente, doente, um corpo não saudável, muitas vezes incapaz de produzir vida.

Ele segue dizendo que, no seu caso específico, o parentesco com o vírus que o habita é poético e produz outros mundos, tanto internos quanto externos. 

 Acho interessante a perspectiva do hiv falando sobre “seu humano”, e pergunto como fica essa questão em relação novo coronavírus. As lições de uma vivência com hiv podem nos ajudar a atravessar a pandemia atual?

A partir de uma leitura de Donna Haraway, que é uma superintelectual, eu me peguei pensando algo bem interessante: se os vírus são entendidos como “inimigos” do sistema imunológico será que não podemos pensar também numa “filosofia da humanidade”, que os humanos são os inimigos do universo? Pensando nisso eu digo que a pandemia do hiv/aid$ nos ensina diariamente que somos “apenas uma pequena partícula de carbono nos confins do universo”, como diria meu terapeuta. Isto é, o ser humano precisa entender que a vivência humana só faz sentido no encontro com outras vivências não humanas. Estamos conectados! A classe geral dos vírus nos ensina que a mutação é o segredo da vida (…). Não adianta manter padrões de exploração, roubo, destruição e assassinatos numa busca desenfreada por uma “riqueza” que só faz sentido mal e porcamente na cultura humana e, ao mesmo tempo, achar que aquilo que nomeamos por “natureza” não irá estabelecer mutações para preservar a vida. Cabe-nos, enquanto viventes de uma espécie humana, estabelecer outros vínculos, outras relações, outras poéticas em relação aos outros, ou melhor, em relação àquilo que é diferente de mim. Donna Haraway tem uma frase muito célebre: “Não faça bebês, faça parentes!” [Rsrsrs]. Nosso desafio é aprender a aceitar a superioridade desse organismo chamado Gaia.

Acho bonito quando o Ramon diz que a natureza, tal qual um organismo, “trabalha” sempre em prol da vida, da manutenção de vitalidade. Segundo ele, isso é Axé: energia vital. E é interessante notar que essa energia vital não diz respeito só aos seres humanos, mas à vida no planeta como um todo. 

Isso é outra coisa que eu aprendo bastante com o Ramon. Seja indicando o disco Quanta do Gilberto Gil, ou o livro/peça/filme A Alma Imoral, do Nilton Bonder, ele sempre dá um jeito de me ensinar um pouco sobre as coisas do Universo. 

O Ramon é uma mistura baiana de catolicismo, umbanda e candomblé, e diz que, por um tempo, fez experimentações com feng-shui e espiritismo, além de ter estudado em escolas adventista e ursulina e ter sido coroinha. “Os anos passaram e fui percebendo com mais intensidade minha ancestralidade a partir de minhas raízes familiares negra e indígena”, ele diz.

Hoje eu sou muito próximo do candomblé, cultuo os Orixás (mesmo sem estar filiado à um Ilê específico – Ilê é casa), sinto a presença de Orixá diariamente em minha caminhada e, mais recentemente, tenho dedicado mais atenção à Ori e Tempo como divindades importantes que constituem minha vivência humana.

Os Orixás que regem a cabeça dele são Oyá, Obaluaê e Oxaguiã. Uma vez, uma Yalorixá disse pra ele que “Orixá é vivo/a”, por isso ele sempre sente essa presença, “seja na chuva, no vento, no passar do tempo, numa pandemia, numa folha, numa comida, num animal, numa pedra, numa água, numa pessoa, em minha cabeça.” 

Logo, pro Ramon, a espiritualidade é importante em qualquer ocasião. 

Em momentos como esse, em que as certezas são postas em cheque (…), a espiritualidade acena para algo que precisa ser cultuado diariamente, cuidado, acolhido. É a nossa parcela invisível, aquilo que a vivência humana não dá conta de explicar. Da mesma forma que a gente come, caga, mija, transa, toma banho, posta coisas nas redes sociais, estuda, trabalha… Precisamos dar atenção à parcela que não encontra significado de forma igualitária, representação unânime, sentido evidente, isto é, a dimensão que eu chamo sempre de invisível. É preciso cultuar o invisível diariamente! Fazer uma reza, uma prece, abrir um tarô, fazer consulta astrológica, entoar mantras, cantar como forma de culto, jogar búzios, fazer ebós com orientação de guias espirituais preparades, conversar com aquilo que faz sentido pra você. Isso é cultuar o invisível!

Segundo ele, quando isso se torna prática, os momentos de crise podem ser lidos através de uma outra “cosmopercepção”, porque ficamos mais sensíveis para aprender com as incertezas, seja num momento de pandemia, luto ou felicidade genuína. 

Uma coisa muito importante que aprendi lendo Leda Maria Martins, escritora nascida no Rio de Janeiro, é que o tempo é espiralar, isto é, se a gente entende o tempo como cronológico (começo, meio e fim) sempre estaremos à espreita do derradeiro momento, num comportamento ansiogênico e, por vezes, paranoico do que o futuro nos reservará. Por outro lado, se eu entendo que vivemos num tempo tal qual uma espiral, entendo que passado, presente e futuro estão coexistindo no mesmo espaço-tempo, daí meus ancestrais estão aqui, eles conversam e dançam comigo, daí que os invisíveis nos aconselham sobre como lidam com os “momentos difíceis”, daí que conseguimos, num exercício poético-político inventar mundos, cenários possíveis para um futuro que é agora.

Essa mudança de entendimento de um tempo rígido para um tempo mais fluido e não linear acaba afetando a percepção que temos da própria arte, pro Ramon: 

Voltando à perspectiva espiralar do tempo: se eu exerço essa arte de forma a produzir sentido para um agora, que também é ontem e amanhã; se eu exerço essa arte para entender o futuro sabendo que sou eu mesmo o produto, o produtor e o processo dessa engrenagem obviamente a produção de sentidos nos escapa, explode em milhões de possibilidades. Daí que produzir pra si uma vida ou existência ética é, em profundidade, produzir arte. (…) Se eu compreendo, nesse esquema temporal espiralar, que a espiritualidade também é vida (…) a produção de minha vida, como uma obra de arte, levará em consideração, SEMPRE, a instância invisível.

Ele lembra de uma frase dita por um amigo nosso, o poeta Ramon Nunes Mello (sobre quem eu falei na edição #22). Eles tavam na Chapada Diamantina, dias depois de consagrar ayahuasca, num lugar dedicado a Iemanjá, quando o Ramon poeta falou:

“Ramones [assim que nos chamamos], a coisa mais bonita da vida é sentir a presença ancorada no corpo, no presente!”. Guardo isso até sempre! Por isso tenho cultuado cada vez mais Tempo — entidade no candomblé, também chamada, a depender da nação, de Iroko —, cultuado cada vez mais Ori (que é nossa cabeça)…

Os orixás são representações das forças e dos elementos da natureza (o vento, a água, a mata…), e eu acho TÃO BONITO que, entre essas representações, exista uma relacionada ao Tempo. 

Enquanto eu tava escrevendo essa carta, dei umas paradas pra ouvir esse podcast da Morena Mariah chamado Afrofuturo, no qual ela discute sobre os “sentidos africanos de tempo”. Na conversa, ela cita a saga Deuses de Dois Mundos, do PJ Pereira. Nessa história, que se passa entre a África ancestral e os dias de hoje, o autor descreve o tempo como um rio circular que deságua em si mesmo.

Gosto muito dessa ideia, porque quando a gente para de perceber o tempo como uma coisa linear, entende que, se o presente já contém o passado e o futuro, então o agora é SEMPRE o momento certo. Não existe adiamento ou atraso. Como diz o Ramon, as coisas acontecem no tempo do Tempo. Entender isso é se libertar dos traumas do passado e das preocupações do futuro.

Eu poderia ter ficado ansioso pra publicar essa carta antes, você poderia nem estar lendo isso, mas estamos aqui e agora. E não teria momento melhor.

*Nathan Fernandes é jornalista e escritor. Já publicou em veículos como Galileu, Yahoo!, The Intercept, UOL Tab, Trip, Super e Veja. É criador do projeto PunkYoga, um depositório xamânico-anarco-queer-psicodélico. Para outros textos & doideiras mil, assine a newsletter.  

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