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Hippie-punk-rajneesh y vidaloka

Por Nathan Fernandes, PunkYoga*

Uma vez, fuçando num oráculo que desconheço, tirei uma carta que falava sobre os Seres-Trovão. Dizia que a carta saía pra pessoas que, como os raios, eram capazes de ligar o céu e a terra.

É gente que borra tanto a linha entre o sagrado e o profano que, pra elas, essa diferença simplesmente deixa de existir. Até chegar num ponto em que céu e inferno passam a ser a mesma coisa. Me lembra o princípio hermético da correspondência, uma das leis do Hermes Trismegisto (ou seria letra do Jorge Ben Jor?) que diz: “O que está em cima é como o que está embaixo, e o que está embaixo é como o que está em cima”.

É uma formulação tão simples quanto difícil de aplicar. No meu caso, pra chegar a vislumbrar uma minúscula possibilidade de absorver esse conhecimento eu tive que tirar de cima dos ombros uma caralhada de culpa católica e redefinir a minha noção de pecado.

Sim, porque é meio difícil conceber a ideia de que céu e inferno são a mesma coisa quando você pensa que o inferno é ruim e o céu é bom, já que, seguindo esse princípio do Hermes, céu, inferno, certo e errado sequer existem.

Eu me identifico muito com isso, porque, ao mesmo tempo que é libertador, também dá um sentido de responsabilidade que tem o peso de uma bigorna.

Fiquei feliz por tirar aquela carta, porque acho que é esse princípio que rege todo o meu trabalho. Talvez, por ser jornalista, eu não sinto apenas a necessidade de me expressar, eu preciso ser entendido. E eu vejo esse trabalho como o de um construtor de pontes. Por mais que, às vezes, eu sinta mais afeição por uma pilha de tijolos do que por algumas pessoas que conheço, não adianta nada falar com a parede.

Toda a ideia do PunkYoga orbita em torno disso, inclusive. O próprio nome é a junção de dois termos aparentemente irreconciliáveis: a sujeira e o anarquismo do punk, com a leveza e o esoterismo da yoga. Assim eu chamo a atenção de pessoas que acham a espiritualidade coisa de hippie babaca, ao mesmo tempo que causo um estranhamento em quem é místico demais pra olhar pra fora do seu próprio campo áureo. A ideia é conectar — mesmo que nem sempre dê certo —, como os Seres-Trovão.

E é por isso que eu me identifico tanto com o Felipe Indigesto e com o trabalho que ele faz com o tarô & outros oráculos que eu não conheço, como petit lenormand e sibilla italiana. Além da gente compartilhar o gosto por sofrências pós-punk, acho que do mesmo jeito que o Jorge Ben conecta samba, futebol e rock aos conhecimentos de alquimia e ao imaginário medieval, por exemplo, o Indigesto liga o místico às coisas mais mundanas do planeta. Não à toa, ele mesmo se identifica como “hippie-punk-rajneesh, cartomante y vidaloka”.

Entendo que pra algumas pessoas pode ser exótico fazer uma consulta de tarô com alguém que tweeta coisas como “to com a virilha doendo sera q alguém poderia beija-la”, ao mesmo tempo que dá dicas de banho de erva e reflete sobre autoaceitação. Mas é exatamente nessa contradição que ele mostra que sabe separar o espesso do sutil. Ou como ele mesmo assume:

Acho que sou bastante irritante e irritável num geral. Não sou necessariamente contra regras, gurus ou mentores, mas gosto da liberdade de escolher onde e quando entrar e me retirar.

E como bom iconoclasta, ele parece desconhecer o sentido de pecado. Mas ele não fala isso, ele mostra.

Outro dia fiz uma consulta de tarô com ele pelo WhatsApp, e acho que toda essa contradição reflete bastante na forma como ele interpreta as cartas. O Indigesto é um oxímoro de All Star e camiseta do The Doors. Óbvio que logo me acendeu a ideia de entrevistá-lo aqui pra newsletter.

Uns dias depois da nossa consulta, já mandei umas perguntas. Uma das primeiras coisas que eu quis entender foi quando um adolescente hardcore, com histórico crente, virou a chave para o tarô.

Acho que na mesma proporção em que eu era medroso e reprimido, também sempre tive lapsos de impulsividade que me proporcionam descobertas boas e ruins; daí uma das minhas melhores amigas fez meu mapa astral em 2011, acho, e fui abrindo a cabeça pra esse universo que até então era praticamente desconhecido. Em 2013 resolvi desquitar com o cristianismo e com o drug free, acabei me perdendo no abuso de drogas sintéticas e estreitei o laço com o tarô através dessa mesma amiga, como forma de autoconhecimento e superação dos vícios. Tive como ensinamento, na época, que só podia mexer no baralho sóbrio e criei o hábito de estudar ele diariamente. Tenho marte debilitado na casa 12, sempre fui dado a autodestruição e preciso ter um cuidado constante com excessos e não levá-los para rotina.

Acho interessante como, mesmo tendo se aproximado tanto da magia, da leitura de oráculos e da espiritualidade, ele continuou mantendo a aura anarquista intacta. Como se ele enxergasse uma ponte entre essas coisas e resolvesse se acomodar bem no meio dela. Tanto que ele mesmo fala:

Sou contra hierarquias e estruturas verticais e isso se cruza bastante com o que tenho como espiritualidade: o movimento circular das coisas. Tenho pra mim que o capitalismo é perverso e fadado ao fracasso, indo contra o que entendo como espiritualidade.”

De fato, se tem uma coisa que o corona vairus mostrou é que o nosso sistema é mesmo insustentável. E, se alguma coisa pode nos salvar, talvez seja essa parte sutil e intuitiva da nossa consciência que foi estuprada pelo modo exploratório de produção.

Querendo ou não, todo mundo guarda dentro de si essa energia devastadora que encontra no patriarcado sua cara mais suja. É o que muita gente chama de sombra. É também o que muita gente tenta esconder, na esperança de que, ao cobri-la com um lençol, ela suma. O Indigesto não. Ele expõe isso tudo na internet e, mesmo que hoje ele tenha amadurecido a ideia de exposição, talvez seja nesse conflito que more a originalidade dele:

Acho que tive uma relação precoce com internet e, por muito tempo, acho que até problemática. Tinha um hype 00’s em expressar o que chamamos de sombra hoje em dia, e, por mais podado e relativamente tímido que eu fosse/seja, às vezes, sempre gostei de escrever e botar meus leões astrais pra jogo. Acabei naturalizando esse tipo de coisa. Meu desafio, hoje, é aprender a guardar algumas coisas da minha intimidade. Não por nada, mas tenho dado bastante valor ao mistério e entendido também que nem tudo é tão interessante ou da conta de ninguém, além da minha. Num geral, acho que lido mal com as sombras como todo mundo, mas bem no sentido de não esconde-las debaixo do tapete — pelo menos não por muito tempo.

Pessoalmente, eu tenho muito cuidado com a forma que eu escrevo as coisas. Por mais que eu faça yoga, medite, tenha um poster de Shiva na porta de casa e use o termo “gratidão” com frequência, sei que se for muito “namastê” nas coisas que escrevo posso afastar pessoas que até estão interessadas no misticismo, mas se assustam com a espiritualidade fora de órbita.

Da mesma forma, eu percebo que o Indigesto tá sempre pensando em empacotar o conteúdo dele com uma forma diferente, por vezes incomum, mesmo que por dentro continue sendo uma flor. 

Gosto de enxergar tudo como forma de linguagem e expressão, e traduzir sentimentos e crenças em linguagens diferentes. Sempre fui assim: de escrever frases em camisetas ou no muro com o que acredito até desenhar isso tudo de uma maneira mais oculta, simbólica e com abertura ao subjetivo… Acredito bastante na gratidão, paz e amor, mesmo com a fandom sendo chato pra um caralho. Só que também acredito no molotv e apoio a revolta popular, sem crise.

E o tarô tem bastante influência nesse processo de autoconhecimento:

O tarô pra mim já foi um bocado de coisas e já me influenciou de diversas maneiras. Hoje em dia, ele é uma ferramenta cheia de símbolos que eu uso pra fazer a leitura das mais diversas demandas: autoconhecimento, leitura de sorte, previsão e por aí vai… É o meu ganha pão, que consigo lidar com gratidão e amor [hahahaha] porque por um tempo eu tinha raiva de me sentir obrigado a fazer isso pra não voltar pro telemarketing ou pro shopping. Acho que ele me abriu muito a cabeça e ampliou a minha visão de mundo.

Por mais irritante & irritável que eu seja, sou bastante tolerante hoje em dia. Não sinto mais necessidade de ter razão ou estar sempre certo, por exemplo. Compreendo os baixos da vida como movimentos naturais, que se as 78 lâminas existem é porque foram baseadas em movimentos que acontecem na vida de todo mundo, então acaba me deixando mais positivo perante o negativo.

Acho isso bem legal e me faz querer saber como ele trabalha pra manter a saúde mental em dia. Ele faz questão de dizer que nem sempre faz um bom trabalho consigo mesmo. E tá tudo certo não ser sempre perfeito. Mas, além do reiki e do thetahealing, achei interessante ele falar umas coisas que todo mundo pode fazer em casa:

Ritualizo as pequenices. Um banho de higiene, a louça lavada e a comida que faço pra mim são rituais diários que tem valor e correspondência espiritual. Às vezes, não me sinto bem emocionalmente e mentalmente, mas com música, dança e uma faxina me sinto limpo e transmutado. Daí acalmo, o ambiente fica limpo e consigo pensar em coisas mais subjetivas, como acender uma vela e queimar algumas ervas para a energia circular.Quanto à proteção, acho que envolve bastante o mental, mas a gente pode utilizar ferramentas que nossa energia se dá bem, como uma boa turmalina negra, além de limpeza da casa com amônia nos 4 cantos inferiores e superiores dos cômodos pra dar aquela limpada monstra. Sair um pouco da internet também é bom. As pessoas falam muita merda e a gente vive conectado, isso faz mal. É importante estar sozinho de vez em quando e usar a conexão pra assistir um filme e depois parar pra pensar nele no banho, limpando e cortando vegetais, etc. O estado de presença no agora é algo que protege bastante na minha visão.

Ele é bruxo. Sabe que ervas, cristais e defumações são importantes, mas nada vale se a mente não tá livre das nuvens carregadas. Como todo Ser-Trovão, ele se alimenta dessa nebulosidade, mas também tá sempre pronto pra iluminar os cantos mais escuros do planeta.

Este texto foi publicado originalmente na edição #27 da newsletter PunkYoga

*Nathan Fernandes é jornalista e escritor. Já publicou em veículos como Galileu, Yahoo!, The Intercept, UOL Tab, Trip, Super e Veja. É criador do projeto PunkYoga, um depositório xamânico-anarco-queer-psicodélico. Para outros textos & doideiras mil, assine a newsletter.  


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