Início Editorias Floresta Ayahuasca: pequenas doses ajudam no tratamento de transtornos mentais?

Ayahuasca: pequenas doses ajudam no tratamento de transtornos mentais?

Por Nathan Fernandes

Nos primeiros meses de pandemia, um anúncio famoso que circulou entre grupos neoxamânicos oferecia “ayahuasca em microdose homeopatia”, a fim de ajudar em processos de ansiedade, depressão e desânimo, além de ampliar a visão, relaxar e liberar os medos. Enquanto algumas pessoas acostumadas com o uso ritualístico questionaram a comercialização, outras viram ali a possibilidade de se conectar com a medicina no conforto do lar. 

Com a intensificação das restrições da pandemia, a oferta de microdoses e florais do tipo parece ter se expandido. Em anúncios mais recentes, novos produtores afirmam que o produto atua no combate e tratamento de doenças como epilepsia, Alzheimer e Parkinson. 

Participantes de comunidades ayahuasqueiras que experimentaram algumas gotas antes de dormir ou de meditar relatam efeitos como a melhora do sono, do humor e diminuição do cansaço, além de uma série de outros benefícios.

Mas, afinal, será possível que o uso do chá em pequenas doses ajude no tratamento de transtornos mentais? Além disso, seria prudente consagrar uma bebida fora do contexto ritual?

Antes de tudo, é preciso entender que microdoses e florais de ayahuasca não são a mesma coisa. “No geral, assim como no processo de diluição da homeopatia, florais contêm quantidades muito ínfimas de princípio ativo”, explica o psicofarmacologista Lucas Maia, que é doutor em ciências médicas pela Unicamp e pesquisador de psicodélicos e saúde mental. “Já a microdose seria o próprio chá, preparado de forma tradicional, mas tomado em uma quantidade pequena. Em termos de princípio ativo, contém uma quantidade bem maior.” 

Isso no geral, porque, para saber de fato, o pesquisador afirma que é preciso conhecer a origem, o processo de produção e a composição da bebida. Por exemplo, preparações feitas com mais folhas de chacrona — que contém o DMT, o princípio ativo psicodélico responsável pela expansão da consciência — tendem a ser mais potentes. 

Atualmente, ainda é impossível ter certeza se os florais possuem algum efeito farmacológico, já que, na ciência ocidental, não existem estudos conhecidos.

Em relação à microdosagem, em um levantamento feito para o portal Ciência Psicodélica, Maia recorreu à principal base de dados da literatura biomédica, o PubMed, e encontrou 22 artigos reportando resultados originais de pesquisa com microdoses de outros tipos de psicodélicos, como o LSD e os cogumelos sagrados, que pertencem à mesma classe da ayahuasca.

Os estudos indicaram que, sim, a microdosagem produz efeitos, mas ainda é cedo para afirmar se eles são, de fato, farmacológicos, ou se são gerados pela expectativa (o famoso placebo) — ou mesmo os dois. 

Os estudos com LSD e cogumelos indicaram que, sim, a microdosagem produz efeitos, mas ainda é cedo para afirmar se eles são, de fato, farmacológicos, ou se são gerados pela expectativa (o famoso placebo) — ou mesmo os dois. 

Apesar da diferença na quantidade de princípio ativo do chá (o DMT), tanto as microdoses quanto os florais podem gerar o efeito placebo. E isso não deve ser desconsiderado.

“Sob várias condições, o efeito placebo desempenha uma porcentagem considerável do efeito terapêutico em si. Muitas vezes é difícil separar o que é o placebo e o farmacológico”, pontua Maia, lembrando que, não à toa, o efeito também é conhecido como “mecanismo de autocura”. “Crenças e expectativas podem gerar uma resposta biológica, levando a um efeito terapêutico.” 

As portas da percepção

Para o povo Yawanawa, do Acre, microdoses não são uma novidade. “A gente costuma dar um pouquinho para quem vai tomar o chá pela primeira vez, assim, a medicina vai conhecendo a pessoa, e a pessoa vai sentindo como vai ser o trabalho”, afirma o líder indígena Matsini Yawanawa, lembrando casos de pais que molham a ponta da língua das crianças com quantidades ínfimas de chá para que elas possam se conectar com a força da substância desde cedo. “Não importa a quantidade, o que importa é o respeito e a confiança.”

Apesar de reforçar a importância do uso ritualístico, Matsini não vê problema no uso fora de cerimônias por pessoas que já conheçam a bebida. “É uma medicina boa para curar. Quem já é acostumado a trabalhar com ela, ou está muito conectado, e não pode ir aos rituais, pode usar em casa. Mas não deve ser uma coisa aberta para todo mundo, porque é perigoso”, afirma. 

Para o líder indígena, é importante ainda considerar a dieta que deve ser feita antes de consumir a bebida. “Não é só tomar o chá e achar que vai acontecer tudo como a pessoa quer, tem que ter uma preparação, mas muita gente esquece dessa orientação”, aponta ele. “É bom cortar o doce, cortar carnes que tenham muito sangue, como boi ou porco, e não fazer sexo, porque isso tira muita energia de cura. Faça quanto tempo achar necessário, assim você vai criando um saldo e a possibilidade de cura aumenta. Depois, beba o chá com respeito, pedindo proteção.” 

“Se a pessoa não usa com respeito, em vez de proteger, o chá pode piorar a condição. É como se, em vez de fechar uma porta para prevenir a doença, você abrisse mais”, Matsini YawanawA 

Os cuidados devem ser levados em consideração, sob o risco da bebida surtir um efeito contrário ao esperado. “Se a pessoa não usa com respeito, em vez de proteger, o chá pode piorar a condição. É como se, em vez de fechar uma porta para prevenir a doença, você abrisse mais. Muitas pessoas não respeitam, mas é porque não sabem com o que estão mexendo. Para nós, a medicina é sagrada”, alerta Matsini. 

Chave para a cura

Para a ciência ocidental, o ditado “a ayahuasca é para todos” também não se aplica. O professor de psiquiatria da UNICAMP Luís Fernando Tófoli, responsável pela Cooperação Interdisciplinar para Pesquisa e Divulgação da Ayahuasca (ICARO), é enfático ao afirmar que o uso de ayahuasca não é recomendado para pessoas com esquizofrenia, transtorno de bipolaridade e que fazem uso de medicamentos com IMAO, já que podem interagir com o chá.

“Pela ausência de estudos, não temos como responder com certeza se essas restrições continuam válidas para os florais e microdoses”, aponta o psiquiatra. “Por via das dúvidas, e por não sabermos o que são exatamente esses preparados de microdosagem — muitos dos quais são irregulares, já que o uso da ayahuasca é apenas para fins rituais e não para tratamento — seria aconselhável, por um princípio de segurança, manter as mesmas restrições, pelo menos até que haja dados mais confiáveis sobre o assunto.”

As restrições são importantes para evitar casos como os que são compartilhados em grupos fechados de pesquisadores. Em um deles, no WhatsApp, uma psicóloga relatou o caso de um paciente que usa o floral em uma quantidade quatro vezes maior do que a recomendada. “Suspeito que esse floral e a forma de administração tenham desencadeado episódios de ansiedade generalizada e sufocamento”, escreveu. Ao não conhecerem a procedência, é possível que muitas pessoas confundam florais com microdoses e vice-versa — lembrando que pode haver uma diferença significativa na quantidade de DMT, impactando o efeito farmacológico. 

Aqueles que, conscientes das restrições, queriam experimentar a bebida em casa devem se ater a algumas medidas, como: conhecer a procedência para saber o que está tomando; no caso das microdoses, começar com doses pequenas, observar os efeitos e ir ajustando; estar em um ambiente seguro e confortável; avisar pessoas de confiança, caso precise acionar alguém. Os que já fazem uso mais frequente, no entanto, recomendam a participação em cerimônias e rituais, onde o ambiente costuma ser mais seguro. 

Como afirmou Tófoli, não existem tratamentos terapêuticos regulamentados com ayahuasca. Mas, no Brasil, o uso religioso é legalizado por uma resolução do Conselho Nacional de Política de Drogas (CONAD). Ou seja, é possível que uma pessoa participe de cerimônias com o chá e converse com um terapeuta sobre isso, mas o profissional não pode administrar ayahuasca ou qualquer outra substância psicodélica em consultório. 

No caso dos florais e microdoses existem, no entanto, questionamentos legais e culturais. Para o advogado Konstantin Gerber, que tem tese de doutoramento sobre Regulação da Cannabis pela PUC-SP, esse uso do chá pode constituir uma forma de biopirataria, quando não há repartição de benefícios com as comunidades indígenas.

“Além disso, quem comercializa pode ser acusado de crime contra saúde pública ou curandeirismo”

“Além disso, quem comercializa pode ser acusado de crime contra saúde pública ou curandeirismo. A Resolução do CONAD veda a publicidade com atribuição de propriedades terapêuticas ou curativas. A comercialização está vedada, sendo liberada apenas a ajuda de custo no âmbito de adeptos de comunidade religiosa”, explica ele, lembrando que o uso homeopático ou fitoterápico requer catalogação de estudos clínicos. “A Anvisa, contudo, veda a utilização do cipó Banisteriopsis caapi [o jagube ou mariri] na formulação de fitoterápicos.”

É possível que a regulamentação mude nas próximas décadas, já que o mundo presencia hoje o que se convencionou chamar de renascimento psicodélico na ciência. Depois de mais de quatro décadas de proibição, substâncias como o LSD, a psilocibina dos cogumelos sagrados, a mescalina do peiote e o DMT da ayahuasca se mostram cada vez mais eficazes no tratamento de condições mentais, como ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e depressão — em relação à males como Alzheimer e Parkinson, no entanto, os estudos ainda são muito preliminares. E o Brasil é destaque neste campo. 

Em um dos estudos mais importantes da área, feito com rigor ao longo de três anos, por exemplo, a pesquisadora Fernanda Palhano-Fontes, do grupo do físico Dráulio de Araújo, do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mostrou que a ayahuasca diminui sintomas de depressão em pessoas resistentes a tratamentos convencionais. E mais estudos continuam sendo feitos. 

A revolução no mundo ocidental pode estar só no começo, mas, para a tradição Yawanawa, ela já acontece desde tempos imemoriais. Segundo a cosmovisão desse povo, plantas como a chacrona nasceram do corpo do primeiro ser humano que encontrou a morte para trazer a cura. “Ela [a ayahuasca] pode trabalhar dentro do coração, mas é preciso se conectar com essa força”, explica Matsini Yawanawa. “O principal é aceitar que ela é uma planta de poder, como se fosse um canal, uma chave para receber a cura.”

Apoie o Namastreta

Gostou da matéria? Ela foi feita com a doação de pessoas como você, que acredita no jornalismo independente e na importância da divulgação responsável e respeitosa de assuntos como este. Colabore você também aqui.

Namastretahttps://namastreta.com.br/
Um portal sobre autoconhecimento e espiritualidade na prática para quem busca informação de qualidade sobre esses universos

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Últimas Tretas

“A constelação familiar me ajudou a abrir mão dos meus filhos por amor”

Thauana estava apegada a ideia de que teria que sacrificar o bem-estar da família para ser a "mãe ideal"

“Não dá para preencher espaço, é preciso produzir sentido”, diz editora da Vida Simples

Ana Holanda afirma que o autoconhecimento é uma das chaves para escrever um texto afetuoso

“Eu não falo as coisas para agradar as pessoas”, diz Monja Coen sobre seu posicionamento político

Líder espiritual não foge de assuntos "espinhosos" e garante que budismo é sinônimo de posicionamento

“A força do xamanismo é maior do que a localização geográfica”, afirma Leo Artese

Xamanista garante que a prática pode ser exercida em qualquer ambiente e o que vale é o bem-estar